Caos planejado: Veículo autônomo como transporte público

Sabe-se que a tecnologia do veículo autônomo ainda é, de certa forma, muito distante da nossa realidade, mas ela está cada vez mais próxima! Como isso poderá interferir no sistema de transporte das regiões? Qual será a receptividade da sociedade e do mercado perante tal inovação? O Doutor em Sistemas de Transporte, Gonçalo Correia, falou um pouco sobre o assunto e ajudou a responder melhor esses questionamentos.

Como a condução autônoma pode ajudar a melhorar a mobilidade urbana das nossas cidades?

As vantagens de não ser necessário condutor nos transportes coletivos tem a ver com o fato de não se ter de pagar ao condutor e não ter de se restringir a operação aos seus horários, o que garante flexibilidade total para gerir o sistema. Por isso se fala muito na utilização destes veículos no transporte para zonas de baixa densidade populacional ou também como acesso de primeiro ou último quilômetro (first/last mile).

Quando falamos do transporte tipo Uber, os seus efeitos dependerão muito da gestão desse sistema, nomeadamente no que diz respeito à possibilidade de compartilhar também do espaço interior dos veículos, o tal carpooling, ou se não estamos falando apenas de um sistema de táxis mais sofisticado. Sistemas mais avançados permitem o compartilhamento do veículo e assim podem tornar o transporte muito mais eficiente, retirando veículos da estrada.

No que diz respeito ao transporte individual, um veículo privado autônomo poderá passar a servir mais viagens do mesmo agregado familiar. Por outro lado, poderá atrair essas mesmas pessoas para a utilização do veículo privado e não do transporte coletivo de passageiros, sobrecarregando mais as estradas. Além destes efeitos de primeira ordem, os veículos autônomo privados, podendo ser redesenhados no seu interior, irão potencialmente fornecer aos seus proprietários uma nova experiência como passageiro que, no limite, poderá aproximar o habitáculo do automóvel de uma pequena sala de estar. Essa mudança conduzirá necessariamente a uma alteração no sentido do tempo passado dentro de um automóvel, podendo fazer mesmo com que as pessoas não se importem de viver mais longe ou mesmo que não se importem de estar paradas dentro dos seus veículos.

Efetivamente, se um veículo for autônomo, este poderá deslocar-se para estacionamentos mais exteriores, onde não vai ocupar espaço na rua. Por outro lado, segundo estudos que fizemos, poderíamos ter um prejuízo de ser mais barato colocar o veículo em circulação à volta do quarteirão do que o enviar para um estacionamento exterior. É preciso ver que efeito se sobrepõe, e que cidade queremos ter, analisando todos os custos e benefícios da tecnologia.

Há algum sistema em teste ou em funcionamento?

Há já vários exemplos em teste, desde Singapura ou Pittsburgh nos Estados Unidos, do que se podem chamar táxis autônomos. Neste último caso, estamos falando da Uber que está atenta a esta tecnologia. Este é o sistema em que ocorreu um acidente recentemente entre um veículo e um pedestre que atravessava a estrada durante a noite transportando uma bicicleta. Acidente que está sendo investigado, sendo que a Uber decidiu parar com os seus testes enquanto não forem retiradas conclusões da ocorrência.

Posso também referir o projeto WEpods, aqui na Holanda, o primeiro serviço com veículo autônomo a ser desenhado para uma rota totalmente comum, passando dentro de uma cidade e tendo que enfrentar todo o tipo de conflitos. O desafio é grande e o sistema ainda esta em desenvolvimento.

A Holanda, a Suécia, o Reino Unido, a Alemanha, a Suíça, são exemplos de países que têm interesse em receber veículos autônomos nas ruas, e estão se preparando para isso.

Qual o impacto dos veículos autônomos nos sistemas de carsharing?

O futuro irá acabar por fundir vários conceitos de transportes. O carsharing de veículos sem condutor acabará permitindo que a pessoa não tenha de se deslocar ao local onde o veículo ficou estacionado, o que virtualmente lhe imprime um caráter de serviço de motorista particular, o mesmo que a Uber presta hoje em dia. Portanto, Uber (Sistema de táxi) e Car2Go (carsharing da Daimler) por exemplo, deverão competir no mesmo mercado.

Um dos maiores custos dos sistemas de táxi e ridesharing são os custos de mão-de-obra (nestes casos, o motorista). Com a dramática redução desses custos através da adoção massiva dos veículos autônomos, tais serviços possivelmente se tornarão muito mais baratos para o consumidor final, podendo gerar um efeito cream skimming sobre o transporte público tradicional (o que, de certa forma, já acontece em algumas cidades). Os veículos autônomos podem afetar negativamente o transporte público tradicional (ônibus, metrôs, VLT, BRT), tudo depende do papel que o veículo autônomo vier a desempenhar no sistema de mobilidade urbano. Não há nada mais eficiente do que transportar muita gente em veículos de alta capacidade. Nada supera um sistema de metrô, mas efetivamente será mais confortável pedir a um veículo para me vir buscar do que ter de me deslocar para o metrô e possivelmente não ter lugar sentado.

Porém, algumas linhas de metrô já operam sistemas sem condutor (São Paulo, Milão, Copenhaga). Semelhante aos sistemas de táxi e ridesharing, os custos de pessoal representam uma parcela significativa dos sistemas de transporte público tradicional. Reduzindo este custo pode-se até mesmo extinguir a necessidade de subsídios de operação ou tornar o sistema completamente gratuito. Os veículos autônomos podem afetar positivamente o transporte público tradicional (ônibus, metrôs, VLT, BRT), o custo do pessoal pode representar cerca de 30% a 40% do custo de operação, depende naturalmente dos países. Se pode ser totalmente gratuito? Não sei. Eu acredito mais na possibilidade dos veículos autônomos poderem cobrir parte da demanda que hoje em dia é difícil de cobrir com os ônibus tradicionais, traduzindo-se em ganhos muito elevados para a sociedade com um aumento da equidade na acessibilidade.

Houve algum teste realizado sobre o assunto?

Com o intuito de mostrar que o tempo dentro de um veículo autônomo iria reduzir, nós fizemos pesquisas utilizando um veículo autônomo last-mile  para fazer a ligação entre a estação de trem de Delft e a TU Delft, em que pedíamos às pessoas para escolherem entre bicicleta, ônibus normal, carsharinge um veículo autônomo. A nossa hipótese era a de que as pessoas iriam associar ao veículo autônomo um “valor do tempo” baixo, porque poderiam usar esse tempo, por exemplo, para ler o jornal.Os resultados que obtivemos foram surpreendentes, já que o valor do tempo era bastante mais elevado do que em todos os outros modos de transporte. Pensamos que as pessoas ainda não confiam totalmente nesta tecnologia e claramente para um percurso curto ninguém se imaginava lendo o jornal ou navegando na internet. Estamos, neste momento, fazendo mais testes sobre esse valor do tempo para viagens de porta a porta e comparando com o automóvel convencional. Os primeiros resultados demonstram valores do tempo muito dependentes do que é possível fazer no seu interior, sendo que o veículo que permite trabalhar terá o valor do tempo mais baixo.

Qual o papel dos reguladores na adoção dos veículos autônomos públicos?

Os reguladores terão um papel fundamental no desenho das soluções que forem desenhadas numa futura mobilidade urbana. A rede deverá continuar a ser planejada por quem tem também a responsabilidade pelo desenho e desenvolvimento do tecido urbano. Não há bom planejamento de transportes sem haver um bom planejamento urbano. Esse tem sido o erro mais comum do planejamento, ou falta dele, em todo o mundo.

As soluções mais dinâmicas de transporte coletivo como a Uber ou a car2go, neste momento, ainda têm um papel relativamente reduzido na satisfação da demanda total de transportes nas cidades. Contudo, à medida que estas empresas vão crescendo e com o advento do veículo autônomo, haverá um reforço desta oferta, o que, dependendo do cenário referido acima, poderá trazer consequências negativas às cidades.

Que cuidados precisamos ter na adoção de veículos autônomos como sociedade?

GC: O maior cuidado que temos de ter é não deixar que o sistema se autorregule. Isso é meio caminho para que o veículo autônomo se converta num problema e não num benefício. É preciso acima de tudo que as cidades sejam planejadas de uma forma totalmente sincronizada entre usos do solo e sistema de transportes coletivos, que permita às pessoas uma acessibilidade sustentável nos seus três pilares: equidade, economia e ambiente.

No futuro, você acha que motoristas irão conviver com veículos autônomos ou ato de dirigir será uma coisa do passado?

GC: O fato é que irão sempre existir automóveis históricos e quem os queira conduzir. Isso terá de ser garantido. Se isso só se poderá fazer mediante o pagamento de um seguro mais alto? É possível. Mas talvez essa demanda no futuro não seja suficiente para que as seguradoras tenham realmente que aumentar os seus preços. O que será um desafio maior é a definição de responsabilidades no caso de acidentes. Isso ainda não está bem definido. No futuro, possivelmente, a utilização de um automóvel será um serviço chave-na-mão, cuja total responsabilidade é passada para a construtora do automóvel. O “dono” passará apenas a ser um utilizador do seu próprio veículo. Já há sistemas desse tipo para automóveis convencionais que incluem seguro, mecânico, etc. O dono do veículo só precisa de o conduzir.

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Fonte

https://caosplanejado.com/entrevista-goncalo-correia-sobre-veiculos-autonomos/

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