Entenda a importância do Aqualibrium Water Competition para conscientizar sobre o uso da água

Escrito por: Maria Laura Araújo Alves

“Tenemos que poner más sentimiento en la ingeniería.”

– Nicola Tarque, PhD Engenharia Sísmica Rose pela Rose School – IUSS

Eu escutei essa frase enquanto participava da equipe de suporte para uma webconferência de um congresso em patologias de construções em junho deste ano. “Devemos colocar mais sentimento na engenharia”, com essa frase, o palestrante apresentou sua pesquisa na área de engenharia sísmica, e sobre como o desenvolvimento de soluções eficientes e criativas nessa área são capazes de, realmente, salvar vidas. Para a área de Engenharia Estrutural e Construção Civil, notar isso é quase imediato, afinal, um dos produtos finais dessa é o local onde moramos, onde estamos todos os dias.

O que muitos demoram a entender é que esse é o papel de todas as áreas das engenharias. Despertar em cada profissional o senso de responsabilidade com a sua profissão e a importância de sua criatividade na transformação da realidade, deveria ser uma competência obrigatória a ser trabalhada nas universidades, as quais são os verdadeiros arcabouços de potenciais criativos da sociedade.  Foi pensando nesse protagonismo que os universitários devem desenvolver desde cedo que, em 2003, o professor Kobus Van Zyl, professor da disciplina de hidráulica do terceiro ano em engenharia civil na Universidade de Johannesburg (África do Sul), propôs a seus alunos que pensassem, em equipe, um modelo físico para demonstrar conceitos de hidráulica (vazão, perda de energia nos encanamentos, e etc). A ideia principal da proposta do desafio veio do desejo de desenvolver uma competição – uma metodologia ativa de ensino – que disseminasse a mensagem da importância do uso consciente da água e do abastecimento nas cidades. A solução foi tão genial que crianças e adultos podem manusear o Aqualibrium com facilidade.

Figura 1: A ideia da competição partiu de um grupo de alunos do terceiro ano de engenharia civil da Universidade de Joanesburgo.


Fonte: Site Oficial do Aqualibrium Water Competition.

Mas por que disseminar essa mensagem?

A África do Sul enfrenta continuamente o problema das secas. Em uma crise ainda recente, em 2018, a cidade correu o risco de ter o abastecimento hídrico completamente cortado, o “Dia Zero” de água, dia em que toda a distribuição de água seria interrompida para casas e comércio. A população, nesse período, viveu um forte racionamento no uso, com controle de consumo de água controlado por pessoa, com cada uma recebendo 25 litros de água diariamente – menos da metade da água necessária para um banho médio. 

Figura 2: Parte do cartaz utilizado na campanha sobre o Dia Zero de Água.

Dia Zero: Cape Town pode ficar sem água | Pé na Estrada
Fonte: Site Pé na Estrada.

Como pode-se perceber, a crise hídrica em diversos países africanos é responsável por tirar a paz (e até vidas) de diversas famílias. Assim, ma mudança de comportamento torna-se necessária para contornar essa situação, segundo autoridades mundiais. Economizar recursos, educar a população, responsabilidades social e técnica dos gestores, são as palavras-chave para a solução, que foram as mesmas que inspiraram a idealização do Aqualibrium na Universidade de Johannesburg em 2003.

Mas também não precisamos ir tão longe (até outro continente) para entender como o uso consciente de água impacta nossas vidas. O nordeste brasileiro enfrenta problemas de secas e abastecimento de água desde o início das implantações das vilas por aqui. Esse problema que assola diretamente o povo da região tem influência até em nossa cultura e literatura: 

“Finado Severino, quando passares em Jordão […] dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação.”

– Trecho retirado do poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto.

Nesse trecho, o autor retrata poeticamente um herói, Severino, um retirante que foge da seca e da fome no sertão brasileiro. O povo tem sede, não tem saneamento, nem condições mínimas de subsistência devido à seca – isso interfere na esperança que veem a vida. Essa sede pode acontecer não somente em lugares tão distantes da capital, como também dentro de uma mesma cidade, em regiões economicamente mais afetadas e desassistidas pelas políticas públicas. 

Figura 3: Capa da animação do poema “Morte e Vida Severina”, da TV Escola.

Morte e Vida Severina | Animação - Completo - YouTube
Fonte: TV Escola.

Em 2017, quando enfrentamos uma forte crise hídrica na região de Fortaleza, 40% da água consumida na cidade, com mais de 3,5 milhões de habitantes à época, advinha de furtos, desperdício e perda, segundo a prefeitura da capital. Quantas vidas não poderiam, então, ser salvas?

Não é só uma questão de modelagem de uma rede de abastecimento. O papel da engenharia deve ser levar a solução e esperança para a vida das pessoas.

Afinal, como funciona a Competição?

A malha, que é a base visual da competição, tenta simular o ciclo de abastecimento de uma cidade, meta maior de conscientização, como podemos ver melhor na Figura 5. O objetivo é distribuir 3 L de água igualmente entre 3 pontos desta malha de abastecimento. O que os competidores podem mudar são: a quantidade e disposição dos canos e os diâmetros desses. Assim, a equipe que desenvolver a melhor ligação entre os canos vence.

Figura 4: Sistema Aqualibrium montado.


Fonte: Site Oficial do Aqualibrium Water Competition.

No entanto, existem algumas restrições:

  1. A malha é constituída por 16 nós;
  2. Os 3 reservatórios são colocados inicialmente pelo moderador, constituindo o desafio. Os competidores não podem alterar as posições desse;
  3. Há 2 diferentes diâmetros de canos 3.7 mm (cano menor, azul) e 7.1 mm (Cano maior, vermelho). Além disso, os competidores podem optar por não usar o cano em algum ponto da malha, sendo então o diâmetro zero.
  4. O número mínimo de linhas vazias é 8, pois não se deseja que se construam 3 linhas idênticas para os 3 reservatórios. É necessário pensar numa conexão eficiente entre os tubos.

Figura 5: Componentes utilizados durante a competição.


Fonte: Site Oficial do Aqualibrium Water Competition.

A pontuação é com base em penalty points em mililitros. Como cada reservatório tem 1 L, ou 1 dm3=1000 ml, espera-se um tanque a encher e alcançar a marca de 1L primeiro, então, a válvula de entrada de água é fechada. 

O peso do reservatório que atingiu o 1L de água é tarado em uma balança padrão. Então, os outros reservatórios são pesados em uma forma de pênalti, ou seja, no quanto o peso se distanciou da tara, da seguinte forma:

Por exemplo, se os reservatórios possuírem 1000 ml, 950ml e 900 ml, o total de penalty points vale 150. Assim, o objetivo é a equipe conseguir o menor valor de penalty points.

Para entender melhor a competição, você pode assistir o vídeo de autoria do próprio professor Kobus (em inglês):

Running the Aqualibrium water competition

Como o Aqualibrium contribui, então, para a Conscientização

Segundo o professor Kobus, a missão principal da competição é levar a mensagem de conscientização a respeito do uso dos recursos hídricos. A competição foi completamente desenvolvida em 2003, durante a comemoração do centenário da Instituição Sul-Africana de Engenharia Civil (SAICE) e Rand Water (o maior fornecedor de água a granel na África do Sul), para reforçar a importância do abastecimento de água e o papel dos engenheiros civis neste processo.

Figura 6: Equipe vencedora da primeira competição.


Fonte: Site Oficial do Aqualibrium Water Competition.

Desde então, a competição acontece anualmente, em nível nacional. Também é utilizada como metodologia ativa no curso de engenharia civil e nas escolas fundamentais e de ensino médio da África do Sul.

  • Nas escolas a nível fundamental, os alunos da graduação usam seus conhecimentos para explicar de forma intuitiva aos estudantes mais novos sobre: como a água chega até nossas casas, ciclo urbano da água, importância de preservar os recursos hídricos, carreira de engenharia civil, e conceitos de matemática e física envolvidos no modelo.

Figura 7: Alunos do professor Kobus ensinando para alunos secundaristas os conceitos da competição, em 2010.


Fonte: Palestra do Aqualibrium durante a X SEC.

  • Nas universidades, os estudantes devem modelar um layout de rede de distribuição de água dentro do EPANET  – software de simulação para sistemas de recursos hídricos – para calibrar o modelo a partir da situação real, montada pela rede Aqualibrium. 

Figura 8: Rede modelada no EPANET (à esquerda) e no Aqualibrium (à direita).


Fonte: Science Direct

Na vida real, os sistemas de abastecimento são ainda mais complexos que a rede da competição. O que torna esse tipo de desafio interessante é a quantidade de conexões diferentes que se pode obter com a rede Aqualibrium, similar a problemas enfrentados na vida real, o que estimula o potencial criativo dos estudantes para inovar nas técnicas de otimização para tomar decisões sobre esses sistemas com muitas possibilidades. 

Por exemplo, na rede Aqualibrium temos:

  1. 24 canos (quantidades de arestas da malha);
  2. 3 possíveis diâmetros ligando os nós (nenhum, o de 3.17 mm e o de 7.1 mm).

Considerando, então, que cada cano tem 3 formas diferentes de serem ligados dentro da malha (informação anteriormente citada), temos, assim, 324 possibilidades possíveis de sistemas, o que dá em torno de 300 bilhões de combinações possíveis.

Esse valor exorbitante de possibilidades é para um sistema “simples” como o Aqualibrium, imagina para os problemas enfrentados na realidade, não é mesmo?

Onde a competição já aconteceu

Como citado anteriormente, a competição acontece anualmente na África do Sul e também já foi realizada internacionalmente. A IX Semana de Engenharia Civil da UFC teve a honra de realizar a competição com a presença do professor Kobus Van Zyl em 2019, no bloco 708 do Curso de Engenharia Civil da Universidade Federal do Ceará.

Figura 9: equipe vencedora da competição Aqualibrium na UFC, em outubro de  2019.

Em 2020, foi possível também contar com a presença do professor Kobus Van Zyl na X edição da Semana de Engenharia Civil da UFC, no formato híbrido do evento. Você pode conferir a palestra completa, em que foi realizada a II edição da competição e a explanação sobre sua origem feita pelo professor.

REFERÊNCIAS

COMPETITION, Aqualibrium Water. About Aqualibrium Competition. Disponível em: <http://www.aqualibriumcompetition.net/joomla/index.php/infom/about-us>. Acesso em: 21 de junho de 2021.

DIÁRIO DO NORDESTE. Economia de água ainda é desafio em Fortaleza. Disponível em: <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/economia-de-agua-ainda-e-desafio-em-fortaleza-1.1719845>. Acesso em: 05 de julho de 2021.

EXAME. Cidade do Cabo ganha 4 dias a mais de água antes de seca. Disponível em: <https://exame.com/mundo/cidade-do-cabo-ganha-4-dias-a-mais-de-agua-antes-de-seca/&gt; . Acesso em: 01 de julho de 2021.

MENICONI, Silvia; BRUNONE, Bruno; ZYL, Kobus van; MAZZETTI, Elisa. Aqualibrium Competition: Laboratory Data and EPAnet Simulations. Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1877705817314182>.  Acesso em: 05 de julho de 2021. 2017.

MUNDO EDUCAÇÃO. Escassez de água na África.  Disponível em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/escassez-agua-na-africa.htm>. Acesso em: 01 de julho de 2021.


Deixe um comentário